sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sangue do meu sangue.

Segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012. Um dia comum, quase comum.

Era meu primeiro dia de aula no curso profissionalizante de teatro da Fundação das Artes. Tinha de tudo para ser ruim já que meus primeiros dias de aula em qualquer lugar são estatísticamente frustrantes. Mas parece que esse negócio que chamamos de teatro costuma ignorar estatísticas. Foi um início relativamente interessante com pessoas igualmente interessantes. Mas não é sobre isso que eu quero escrever hoje.

No dia seguinte, terça, eu iria participar de um teste para uma oficina de um curso de teatro e cinema lá na Cia da Matilde. Sem problemas, tirando que eu tinha que trabalhar bem no horário do teste. Eu também não havia preparado cena alguma (mas isso nem era um problema, já que estou acostumado a deixar tudo para última hora mesmo). A grande questão do dia, portanto, era arrumar uma boa desculpa para faltar no trabalho. Enquanto pensava em algo, conversava com a Milena (que também iria fazer o teste) pelo msn. Fiquei entre fingir que estava doente e passar no posto de saúde ou ir doar sangue. Milena foi a gota que transbordou o balde que me fez decidir doar sangue. Era algo que eu adiei desde que fiz 18 anos e que agora tinha uma motivação a mais para fazer.

Aliás, a possibilidade de atuar mais uma vez com a Milena talvez tenha sido o grande motor que me motivou a realmente querer fazer esse teste. Já contracenei com muita gente boa, mas ninguém chegou nem perto da sintonia que tínhamos no teatro, fora ou em cima do palco. Era a chance de reviver o passado no presente.

Mas não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir.

Outro entrave era que nenhum de nós tinha cena pronta para o teste.
Decidimos então nos encontrar mais cedo na Estação Jovem para ajudarmos um ao outro a criar nossas cenas individuais (Milena já aproveitaria e faria sua inscrição para a oficina de fotografia). Mas antes eu tinha de fazer uma boa ação.


Terça-feira, 7 de fevereiro de 2012.

A primeira tarefa do dia era unir o útil ao agradável: fazer uma boa ação que eu já adiava há muito tempo e de quebra ganhar um atestado para faltar no trampo.

Eu nunca havia doado sangue. Na internet dizia que não doía nada. Era só tirar o sangue, comer um lanche maroto e seguir rumo à Estação Jovem.

Primeiro um cadastro básico. Endereço, essas coisas. Depois um mini exame de sangue para o teste de anemia. A enfermeira então espetou a ponta do meu dedo para tirar uma gota de sangue. Tranquilo. Até começar a arder pra caralho. Era o mau presságio de que eu iria me foder muito ainda. O próximo passo era a entrevista. Em uma sala reservada me fizeram uma bateria de perguntas do tipo se eu tinha aids, dado o cu por aí ou transado com animais.

Depois finalmente era a hora de fazer a sangria. A primeira instrução foi ir tomar um copo de suco. Quando voltei, deitei na maca e a enfermeira laçou meus braços com um elástico estupidamente apertado. Pedia para eu abrir e fechar a mão enquanto ela procurava a minha veia. Quando ela finalmente espetou meu braço com a agulha (puta agulha grossa, por sinal), eis que inicia-se o meu ato solidário. Haviam duas bolsas a serem enchidas: uma pequena, que nós doadores poderíamos ver com clareza, e uma maior quase que escondida da nossa visão.

Enchi a bolsa menor rapidamente. Iria embora em breve, pelo visto. Bem... não.

Eis então que meu braço começa a formigar. Perguntei pra enfermeira se aquilo era normal. Ela disse que sim. Pouco tempo depois comecei a sentir dificuldade de abrir e fechar as mãos. A enfermeira então me deu uma bolinha para apertar. Pouco tempo depois nem sentia mais a bolinha.

Comecei a sentir frio e a tremer um pouco. Cruzei as pernas. Um enfermeiro passou e perguntou se eu estava bem. Ao responder que sim, mesmo querendo dizer não, ele me mandou descruzar as pernas na maca.

A enfermeira perguntou mais de uma vez se eu me sentia bem. Tirando a tontura, o frio, Jesus segurando na minha mão dizendo “Filho, tudo irá ficar bem” e o fato de eu não sentir mais meu braço e mesmo assim ter que abrir e fechar a mão apertando a lazarenta da bolinha morfética, eu estava bem.

Mesmo querendo que aquilo fosse interrompido e meu sangue fosse colocado de volta no lugar, ou mesmo que meu braço fosse amputado, eu tinha um objetivo a ser cumprido naquele dia. Não iria morrer antes de encontrar a Milena na Estação para fazermos o teste. Mas estava foda. Realmente foda.

A enfermeira então deitou a maca para meu sangue descer pro cérebro (?) e pediu pra eu dobrar as pernas na maca tipo pasta de dente sendo espremida. Estava demorando mais do que o previsto. Enquanto isso várias pessoas doavam seus sangues sem problemas e com certa rapidez enquanto só eu passava por maus bocados ali. Mas uma hora o saco escondido encheu completamente. Era o fim. Bem... não.

A enfermeira me deixou de observação por 20 minutos na maca pois eu estava muito pálido. Mas eu não iria morrer antes de ir fazer o teste.

Depois dos 20 minutos fui liberado para comer os lanches marotos. Mal estava me aguentando em pé. Mas com o atestado em mãos que me garantia um dia de repouso, eu tinha muito o que fazer ainda naquele dia.

Aquele enfermeiro que me mandou descruzar as pernas dizia a todos os doadores quando eles poderiam doar de novo. A mim ele só perguntou se eu estava realmente bem.



Consegui chegar sem ambulância na Estação. Milena não estava lá. Quando liguei o celular vi uma mensagem dela dizendo que iria chegar depois. Ela ainda me ligou para confirmar os documentos para se inscrever pra oficina de fotografia. Quando ela chegou na Estação eu ainda estava vivo, quase morto.

Após fazer a inscrição pra oficina, começamos a decidir sobre nossas cenas. Milena decidiu falar sobre escoteiros. E eu sobre doação de sangue (óbvio que até chegarmos nisso demorou muito tempo). Ainda escrevemos as redações que faziam parte do teste inicialmente. Em algum momento desse parágrafo, encontramos a Luiza indo fazer sua inscrição para a oficina de fotografia também.

Fomos para o teste. Lá na Matilde encontramos a Carolets e conhecemos outras pessoas. 20 reais a inscrição. Havia 40 vagas e milagrosamente só 44 candidatos apareceram. Todos passariam, portanto.

Mas a hora do nosso teste demorou (sim, mesmo com todos garantidos ainda sim haveria teste). E eu mal conseguia me aguentar em pé aquela altura. Quem doa sangue precisa repousar durante um dia e eu estava ali na tensão do teste, em um calor insuportável, de pé na fila. Mas eu não iria morrer antes da minha vez de apresentar.

Milena se apresentou antes de mim. Como sempre foi muito bem. Fui logo em seguida.
Meu corpo estava esgotado, sem sangue. Errei falas. Talvez meu cérebro estivesse sem sangue também. Só fui aprovado porque todos foram. Mas eu nem liguei, o objetivo do dia estava cumprido. Milena e eu passamos no teste.

Após eu repetir exaustivamente sobre minha doação para as pessoas, fomos ao Mc comer alguma coisa.

Foi uma parte do dia que eu achei que iria desmaiar a qualquer momento. Estava com tontura, com o raciocínio lento. A essa altura às vezes esquecia quem era Milena. Mas ela estava ali na minha frente para eu lembrar de tudo que me trouxera até ali. Era o tom de voz e o brilho dos olhos que me puxava de volta da vontade de desmaiar, que me dava forças para não me entregar ao capricho da fraqueza.

Eu sabia que mesmo estando ali - quase não estando - que aquele era um dia especial. Por raríssimas vezes eu saí com a Milena sem a presença de terceiros. Uma vez quando tomamos Eno na farmácia e outra quando fomos assistir Arritmia.

Mas mesmo estando naquele estado, eu me sentia feliz por estar ali.

E foi essa felicidade que ainda me deu forças físicas para assistir a aula de fotografia à noite.






















Um dia eterno enquanto durou.

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